quinta-feira, 31 de maio de 2007

FÉ E RAZÃO: UM CAMINHO


Entre a crítica e a convicção(*)

Alfredo dos Santos Oliva(**)

Revista Teologia Hoje vol 2, núm 2 (2004) artigo 4

Introdução

Paul Ricoeur, que é um cristão reformado e dos mais importantes filósofos contemporâneos, concedeu uma grande entrevista que acabou por ser publicada na forma de livro com o título de "A crítica e a convicção". O nome da obra originou-se de um trecho da entrevista em que Ricoeur é questionado acerca de como conseguia harmonizar a sua vida de pesquisador no campo da filosofia com sua fé cristã. Sua resposta foi a de que ele havia feito uma opção por viver da tensão entre a permanente crítica do pensamento, tarefa da filosofia, e a convicção, atributo da fé.

Gostaria de utilizar as duas metáforas provenientes da entrevista do filósofo francês para dar nome a esta exposição e refletir sobre um fato muito comum entre nós que optamos por transitar nas fronteiras da academia e da vivência da fé cristã. Penso que a escolha de Ricoeur tem sido uma exceção à regra. A maioria das pessoas tem escolhido viver somente uma das duas dimensões. Desejo avaliar as implicações que uma opção unilateral pode ter sobre a vida das pessoas, para, em seguida, propor uma alternativa tensa: viver entre a crítica e a convicção. Ao final de cada um dos três ítens vou fazer uma avaliação das conseqüências de cada modo de relacionar ciência e fé.

1. O caminho da crítica sem convicção
Um dos debates que tem ocupado as ciências sociais e humanas na atualidade concentra-se em uma severa crítica ao iluminismo moderno. Dentre os vários aspectos desse projeto, os estudiosos contemporâneos, de forma especial, têm falado da confiança que esses professavam na autonomia e na liberdade humanas, de suas críticas veementes a toda forma de religiosidade, sobretudo se fosse institucionalizada, bem como de sua valorização excessiva da racionalidade. Mesmo muitos religiosos, sobretudo os que foram gerados dentro da tradição reformada, não estiveram imunes a esse racionalismo. Apenas se diferenciavam de seus contemporâneos seculares por não aceitarem o ateísmo. Parece-me, todavia, haver diferenças muito tênues entre um ateísmo declarado e a apologia de uma religião nos simples limites da racionalidade!

O iluminismo, que se consolidou como proposta no século XVIII, deixou de ser projeto para se tornar um paradigma societário no século XIX. De projeto de sociedade, passou a reger modos de pensar e agir no mundo ocidental contemporâneo. Essa cosmovisão tem produzido muitos frutos, alguns bons e outros ruins. Não tenho espaço para fazer esta avaliação agora.

Neste momento apenas gostaria de destacar que este caminho que incompatibiliza a vida acadêmica com a experiência e a vivência da fé tem suas raízes mais profundas no paradigma iluminista. Para essa visão de mundo a ciência está mergulhada em uma linguagem conceitual precisa e no exercício rigoroso da racionalidade cognitiva, portanto incompatível com as categorias do submundo religioso, por demais imerso em uma linguagem simbólica, cheia de metáforas e sentidos que a razão nem sempre pode apreender com muita precisão.

Minha compreensão não é a de que uma vida de fé seja incompatível com a pesquisa acadêmica, nem mesmo acho que a experiência religiosa seja vazia de racionalidade, mas entendo que, pensando assim, não estou em sintonia com a maioria dos intelectuais do mundo ocidental contemporâneo. Desde a modernidade, temos aprendido a pensar a vida religiosa a partir de expressões de caráter negativo - obscura, opressora, alienante etc. - e a pesquisa científica de forma positiva - iluminadora, libertadora, crítica etc.

Em função deste contexto em que ainda vivemos, não me espanta que muitas pessoas sérias na sua profissão acadêmica sintam-se envergonhadas de buscar ou viver a convicção que a religião gera em seus adeptos. Elas foram treinadas e estimuladas a duvidar e a criticar tudo e todos. As pessoas ligadas à academia foram estimuladas a desenvolver apenas a dimensão cognitiva de sua racionalidade. Outros aspectos ou dimensões da racionalidade, como a estética e a expressiva, têm sido menosprezados pelos cientistas. Filósofos, como o alemão J. Habermas, têm se ocupado em fazer uma interessante crítica à racionalidade ocidental, bem como ao reducionismo que tem levado muitos pesquisadores a se esquecerem da sua multidimensionalidade. Por causa desta visão reducionista de razão, a expressão de convicções, para serem dignas, deveria estar baseada em evidências empíricas que fossem racionalmente explicáveis. Deus seria um ser por demais abstrato e intuitivo para ser alvo da atenção de cientistas racionais, com poucas e felizes exceções.

Não são raras as pessoas que escolhem trilhar o caminho da crítica sem convicção. Lembro-me de um professor dos tempos de graduação em uma universidade pública que, sabedor de que eu estudava teologia e história ao mesmo tempo, uma vez disse em sala de aula que "“não sabia o que padres, freiras e seminaristas estavam querendo ao estudar história". Na mente de meu estimado professor, a busca pelo conhecimento acadêmico não se justificava para as pessoas de fé. A crítica proporcionada pela investigação científica não se compatibilizava com a convicção que a experiência de fé proporcionava. A vida acadêmica só faria sentido para quem desejasse ser livre do suposto obscurantismo proporcionado pela religião.

Este caminho tem seus problemas: pode gerar arrogância acadêmica, aridez intelectual e emocional, falta de critério para avaliar as conseqüências éticas do saber científico, intolerância para com outras formas de saber etc.

2. O caminho da convicção sem crítica
Outro debate interessante proporcionado pelas ciências humanas e sociais é o que diz respeito ao modo mais adequado para se designar as transformações pelas quais o mundo contemporâneo tem passado. Se há um certo consenso em designar o período compreendido entre os séculos XVI e XIX de modernidade, os estudiosos ainda não concordaram sobre a nomenclatura que poderia explicar as mudanças que o ocidente experimenta desde os últimos 50 ou 60 anos do século XX.

Alguns pesquisadores gostam de se referir aos tempos atuais usando a expressão pós-modernidade (B. S. Santos), outros preferem o termo modernidade tardia (A. Giddens) ou mesmo neomodernidade (S. P. Rouanet). Há concordância em apenas admitir que existem certos valores da modernidade que precisam ser analisados de forma crítica (racionalismo estreito, cientificismo, crença na autonomia do sujeito), mas há uma enorme dúvida quanto ao que se deveria colocar no lugar do projeto moderno.

Uma das alternativas ao projeto iluminista tem sido o que C. Lemert chama de pós-modernismo radical. De forma bastante simplificada, seria uma afirmação dos valores negados pela modernidade, ou seja, uma apologia radical do irracionalismo, uma veemente negação do valor da ciência e uma crença na dissolução da subjetividade. Esta perspectiva ou projeto seria responsável pela difusão de um relativismo na academia, bem como de um excesso de religiosidade e ou mistificação das imagens de mundo.

Muitas são as expressões para designar a efervescência religiosa dos dias de hoje: revanche do sagrado, retorno do sagrado, emergência de um sagrado selvagem, dessecularização etc. Também não sei ao certo como designar este mundo contemporâneo onde a religiosidade impregna todas as instâncias da vida humana, mas estou certo de que está florescendo algo muito perigoso. O excesso de mistificação da realidade tem construído um mundo carregado de símbolos vazios e escasso de reflexão e análise.

Também não é pequeno o número de pessoas que escolhe trilhar por este caminho. Lembro-me dos fundamentalismos americano e muçulmano, muito em voga no cenário mundial dos dias de hoje. Religiosos que não conseguem ler a realidade para além da roupagem sagrada e intolerante. O presidente americano se acha o messias do reino da luz que deve erradicar as obras das trevas (islamismo, terrorismo). Do outro lado, religiosos muçulmanos radicais se atiram sobre pessoas, prédios e estabelecimentos públicos, verdadeiros homens e mulheres bombas explodindo a vida alheia, por crerem que assim podem acabar com os inimigos de Alá (cultura ocidental, imperialismo).

Também este caminho tem os seus perigos: pode vir a gerar intolerância para com outros atores religiosos, negação da importância do saber científico, obscurantismo intelectual, isolamento social e afetivo etc.

3. O caminho da tensão entre a crítica e a convicção
Felizmente nem todas as pessoas acham que radicalizar os anti-valores da modernidade é a melhor forma de criticá-la. O sociólogo português B. S. Santos, por exemplo, entende que a modernidade produziu uma série de déficits, promessas não cumpridas, mas também produziu muitas coisas positivas. Não se deve jogar fora a banheira com a criança dentro. Não há nada de errado com a razão em si. Por si só o exercício da razão não é bom nem ruim. Há problemas, sim, com a concepção estreita de razão da modernidade, que não permite perceber o mundo para além de sua dimensão instrumental. O mesmo se pode dizer de sua supervalorização, que chegou ao ponto de deslegitimar todas as demais formas de conhecimento que não fossem científicas e/ou racionalistas.

Penso que o caminho da tensão proposto por Ricoeur é uma alternativa muito interessante. Entendo que nos dias de hoje precisamos de pessoas críticas, que manejam bem conceitos e categorias do campo científico. Homens e mulheres capazes de mostrar a face obscura e opressora da religião e de suas expressões radicais. Creio não haver nenhuma necessidade de se buscar refúgio na certeza cega dos fundamentalismos religiosos. Deus dotou o ser humano de racionalidade para que ele a usasse sempre.

Lembro dos crentes dos tempos do Novo Testamento, conhecidos como bereianos, que ouviam as pregações religiosas e depois julgavam o que tinham ouvido. Não temos necessidade de fazer nossas mentes se tornarem apenas receptáculos de informações simplesmente porque temos tido uma experiência religiosa que tem mudado o modo como vivemos. Mais do que nunca, precisamos de pessoas convictas do amor de Deus e que não se envergonham de sua identidade religiosa, que não se acovardam diante dos desafios críticos apresentados pela ciência.

Por outro lado, a valorização do saber racional-científico não pode levar as pessoas a abrirem mão de sua opção religiosa. A ciência despida de uma dimensão ética/religiosa tem se mostrado trágica. Não há nenhuma necessidade de se ser ateu para se poder ser um cientista excelente. O que faz a qualidade de um pesquisador é o conhecimento de seu campo de estudo: domínio de instrumental teórico-metodológico, conhecimento empírico acumulado ao longo dos anos, destreza no uso da linguagem técnica da área, reconhecimento de sua excelência por seus pares decorrente de sua seriedade etc.

Este é o caminho que gostaria de propor: viver permanentemente na tensão entre a crítica (vivência da reflexão) e a convicção (vivência da fé); a crítica como fator que não nos permite viver uma fé cega, imatura, intolerante, superficial; a fé e o compromisso com o Reino de Deus como critério que nos permite avaliar o saber acadêmico e suas implicações éticas.

Na minha forma de ver este caminho pode produzir algumas experiências desagradáveis: instabilidade intelectual e espiritual, necessidade permanente de rever valores religiosos e acadêmicos, rejeição ou marginalização tanto pelos religiosos como pelos cientistas. Mas os frutos poderão ser compensadores: utilizar categorias do mundo acadêmico como critério que pode nos imunizar contra o obscurantismo religioso, avaliar a ciência desde uma perspectiva da ética do Reino de Deus, encontrar respeitabilidade entre religiosos e cientistas, possuir preciosas ferramentas profissionais e acadêmicas a serviço de Nosso Senhor Jesus Cristo etc.

Notas

* Palestra proferida na I Semana de Esperança, promovida pela Aliança Bíblica Universitária (A.B.U.) da cidade de Londrina, no dia 24 de novembro de 2004.

** Membro da Comunidade Nova Aliança, em Londrina. Mestre em teologia pelo Seminário Teológico Batista do Norte (Recife, PE) e em sociologia pela Universidade Federal do Ceará. Doutorando em história pela Universidade Estadual Paulista, câmpus de Assis. Professor da FTSA.


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