sexta-feira, 17 de outubro de 2008

FAZENDO COM CARINHO


Desde sempre, existe em nós um prazer imenso por ver as coisas prontas. Qualquer ação criadora de nossa parte recebe nossa admiração, mais limpa do que o orgulho, uma satisfação de mãe com os filhos embalados no colo. Imagine-se testemunha do maior empreendimento criativo.

Deus rearranjou novelos de luz para tecer uma roupa luminar. E iluminando a Terra, ainda disforme, inocupada, um conjunto mesmo de rochas, em uma superfície de 510 milhões de quilômetros quadrados, o Criador divide o tempo em dia e noite.

Surgiu, pela autoridade criadora, a extensão das águas, justo a água, matéria fundamental para que o mundo passasse de uma reserva mineral para o estágio seguinte, o de uma biosfera povoada de criaturas as mais diversas e divertidas. E a natureza não possuía uma mácula em seu projeto e consecução.

Ali o Artista reuniu os elementos bem conhecidos que formam a matéria viva; mas o ingrediente que faltava, um elemento-mistério acrescentou, para confundir os microscópios: o fôlego de vida, princípio ímpar, fundamento da vida em todo seu movimento, entusiasmo, vôo, vibração, nado, onomatopéia, rastro, pulsação e fôlego.

Adiante, o Maestro, imaginando a qualidade das coisas que criaria, trouxe à luz, pela regência de suas palavras, à toda forma vegetal, de samambaias com seus tentáculos verdes, aos cedros libaneses; o campo foi povoado por glicínias vaporosas, de matizes anis, e madressilvas, brancas e entusiastas como noivas rumando para o altar; dálias enchiam a terra, como os dentes quando compõem sorrisos. Orquídeas, cravos, hortênsias, rosas, jasmim – muitos eram os buquês que o Autor da vida preparava para os seres que amava, embora não os tivesse feito ainda, encontrando-Se, no entanto, por expectante fazêlos.

No quarto dia, o Engenheiro preencheu as lâmpadas do espaço, dissolvendo o grosso couro de neblina que filtrava a luz extra-planetária.

Estava próximo o clímax de Sua Obra.

Estruturas complexas e com uma interdependência funcional, que só poderiam demonstrar uma vontade inteligente por detrás de sua existência, foram sendo desenhadas e postas nas criaturas que iam ocupando os mares e acompanhando o vôo do vento.

Nos mares e rios, cardumes de peixes prateados como metal, ou luminosos como as pedras preciosas, faziam, em seu frêmito de alegria em polvorosa, borbulhar as águas. Carpas, arraias, delfins, polvos, ostras, camarões, baleias multiplicavam-se no ritmo da pronúncia de seu Autor.

Pelos céus, outras aparições. Os tentilhões ovais e verde-acizentados, com uma pequena lua para cada órbita uniformemente noturna; com o vento, arrepiou-se a cabeleira iriada das cacatuas, que saídas do atelier verbal, já imitavam os anjos em derredor ou quebravam as nozes com seu bico de tenaz; o olhar obliquamente misterioso do mocho, de orelhas pontudas, rivalizando em dimensão com suas pupilas negras e severas, atento à festa do dia, mas esperando a noite para se alegrar; os caburés empoleirados, com o ventre e as asas marchetados de neve, ecoavam longamente seus cantos à beira das águas; esguios e eriçados, bandos de uirapurus uniam-se à orquestra, com seus instrumentos melodiosos; como num rinque, as garças deslizam, leves como se o corpo fosse só plumas, música, atributos de vento e cristal; sussurrando alegria em rasantes de reconhecimento, os milhafres, as águias e os falcões teciam reminiscências de hibiscos no platô de safra.

Chegara o momento! Deus esfrega as mãos, Satisfeito. Chegara o momento sonhado por uma mente eterna.

O Rei se inclina em direção ao solo. Você espera encontrar tudo nas mãos de Deus – menos argila. Um Ser Poderosos, que com a Palavra criara estrelas e quásares, não precisaria de esculpir algo. Somente o amor poderia explicar a cena emoldurada pelo silêncio dos anjos.

É moldado um boneco com o cume do crânio mais largo do que a sua base. Não se trata de nenhum símio, como os que presenciam a tarefa de seus galhos. O grande Projetor constrói então o cílio com capricho esmerado.

Sua locomoção nunca compreenderia andar sobre os jarretes. Era uma espécie viva diferente dos animais – uma obra-prima em relação à qual o australopiteco não seria nem mesmo um distante rascunho. Sem dúvida, a mais biográfica das obras que Aquele escritor deixara pela natureza.

A textura da pele, a cor das pupilas oceânicas, o tônus muscular, o timbre da voz, a superfície levemente rubra de uns lábios sadios – tudo era imaginado para em seguida aparecer no manequim inanimado.

Porém, Deus via que aquelas mãos tomariam do fruto no centro do bosque e desobedeceriam à Sua restrição. Via que aqueles pés robustos seriam feridos por espinhos e cardos, após deixarem o lar que era seu. Deus contemplava toda uma raça de egoístas, presunçosos, assassinos, roubadores.

Por causa do Criador o homem nasceu. Mas por causa do homem – errático e moribundo numa terra amarga, sob o enxame das más escolhas – o Criador nasceria, cercado de outros animais, não em um jardim, mas num cantão do mundo lesado. E o homem, que por séculos dominara a extração e sabia utilizar os minérios, colocaria pregos nas mãos que esculpiram as suas. Um carpinteiro constrói o patíbulo, que Lhe porão sobre os ombros. Uma coroa de espinhos, maldição que o pecado trouxe à Criação, adorna-Lhe a testa engomada de suór.

E Deus, que vê e sabe todas as coisas que serão antes de o serem, daí Sua onisciência, tão confusa como é para nós, limitadas criaturas, Deus examina essas matérias, sem estampar contradição ou arrependimento. Nada Lhe detém do afã criativo. Seu prazer por esculpir um ser à Sua imagem e semelhança é soberano e prevalecerá, ainda que o mal se espalhe por alguns séculos, ameaçando Seus filhos. Deus conhece o fim do Conflito. Será acirrado. Seu sangue será o preço – o preço que Ele está disposto a pagar pelo boneco de barro que aguardo o próximo ato, para que se torne uma alma.

Deus sopra o fôlego vital, e Adão, antes de tomar consciência do que quer que seja, conhece a Sua origem, Sua glória, Sua Vida e Seu renascimento. Deus sorri, num sorriso maroto e sincero, em dueto com o homem perfeito. Tudo saíra como Ele sonhara.

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