terça-feira, 21 de outubro de 2008

O DISCURSO DO VAZIO (OU O QUE DEU NA CABEÇA DO CURADOR DA BIENAL?)


Os artistas preferem nos induzir ao pensamento de que a produção artística depende de um tipo de inspiração irracional, baseada em intuição e habilidade sensorial. Note a mensagem destes decassílabos com seus enjambemants característicos, escritos pelo poeta surrealista Jorge de Lima

Não procureis qualquer nexo naquilo
que os poetas pronunciam acordados,
pois eles vivem no âmbito intranquilo
em que se agitam seres ignorados.

Mas a afirmação da arte como atividade mística, própria àqueles que vivem “no âmbito intranquilo/ em que se agitam seres ignorados” não é exclusiva da poética. Artistas plásticos, músicos, escultores, coreógrafos, entre outros, reivindicam a categoria de visionários, quase que tomados por um sentimento criativo fora de seu próprio controle. Dentro desta perspectiva, a função artística passa a desempenha um papel religioso, com uma função redentora – redimir o mundo através de uma mensagem estética. [1] A arte, como produto da Inspiração autônoma, isenta o artista da responsabilidade moral daquilo que produziu, sendo que a própria arte fica posicionada acima dos julgamentos éticos.
No entanto, as expressões artísticas estão veiculadas à cultura, ao temperamento e à visão de mundo do artista. A iniciativa pós-moderno de desvincular a Arte do mundo, tornando-a virtualmente um mundo à parte, é motivada pelo desejo de se libertar da visão mecanicista do mundo, que se tornou dominante a partir do Iluminismo. A arte é apenas um tipo de discurso, para transmitir ideologias, gostos e opiniões. [2] Acredito que através do meio artístico cristãos genuínos podem (e devem) apresentar sua compreensão da realidade de um modo impactante.
Uma perturbadora demonstração de como a Arte não é algo neutro é a controversa decisão do curador da 28ª Bienal de São Paulo, Ivo Mesquita, de optar por deixar vago os 12 m² do 2º andar (chamado de “pavilhão Ciccillo Matarazzo”). Segundo Mesquita, “O espaço vazio é um gesto simbólico, no sentido de abrir um debate. O que deveria estar cheio está vazio, está vazio para instalar um outro tipo de experiência do espaço, para instaurar um processo de reflexão.” [3]
Num mundo em que o vazio está diante do horizonte devido à falta de um parâmetro seguro para validar a conduta ética humana, a arte não tem nada para dizer – e por isso, o melhor que se tem a fazer é apresentar a mudez de paredes vazias. O desespero moderno só não é mais deprimente do que o silêncio daqueles que, possuindo a verdade, preferem guardá-la para si mesmos.

[1] “Kandinsky, Marc, Schoenberg, Taut, Steiner ou Klee [criadores máximos da arte moderna] criaram uma arte de conteúdos espirituais explícitos e defenderam uma intuição poética ligada a valores ideais transcendentes à racionalidade civilizatória. Franz Marc afirmou expressamente que a arte moderna devia assumir aquela mesma dimensão espiritual que as religiões haviam refletido em outras culturas. […]”, Eduardo Subirats, A cultura como espetáculo (São Paulo, SP: Nobel, 1989), 22. Ver também Francis Schaeffer, A morte da Razão (São Paulo, SP: Aliança Bíblica Universitária do Brasil; São José dos Campos, SP: Editora Fiel da Missão Evangélica Literária, 1989), 5ª ed, p. 59.
[2] Falando sobre a música, por exemplo, afirma certo autor: “A música é uma forma de discurso tão antiga quanto a raça humana, um meio no qual as ideias acerca de nós mesmos e dos outros são articuladas em formas sonoras.
[…] O discurso modifica continuamente a forma simbólica em que aparece. Tomemos por um momento a extensão e a evolução diária das línguas, evidenciada pela rápida revisão dos dicionários. E o discurso pode aparecer em novas e saudáveis combinações de formas simbólicas, como cinema, televisão e publicação na internet. Discurso é um termo genérico, útil para toda troca significativa. Engloba o trivial e o profundo, o óbvio e o recôndito, o novo e o velho, o complexo e o simples, o técnico e o vernáculo.
[…] Como discurso, a música significativamente promove e enriquece nossa compreensão sobre nós mesmos e o mundo.” Keith Swanwick, Ensinando música musicalmente (São Paulo, SP: Moderna, 2003), 18. Grifos da autora. Heron Moura chega à conclusão semelhante no que diz respeito à poesia: “[…] O poema é linguagem, e obedece às mesmas leis da mente que moldou e manipula a linguagem. O ilogicismo no poema é um sonho […] O poema é linguagem humana, demasiado humana. E o logicismo inveterado do homem aparece também no poema.” Heron Moura, “Baudelaire era um robô?”, in Diário Catarinense, Sábado 19 de Abril, ano 22, nº 8.033, Caderno Cultura, 3.
[3] “A beira do vazio”, ano XXXVII, nº 11.418, Terça-feira, 21 de Outubro de 2008,1.



Um comentário:

joêzer disse...

palavras acertadas, douglas!

o educador musical inglês keith swanwick (tenho o livro citado e o aprecio bastante) concordaria que os discursos são moldados pela visão de mundo, as práticas musicais moldadas pela cosmovisão de cada comunidade.


pena a arte ter dado tanto espaço ao marchands, aos curadores e aos charlatões.