sexta-feira, 31 de outubro de 2008

QUESTÃO DE VIDA OU MORTE


A morte está desacreditada. Ingmar Bergman, o cineasta sueco, a colocou frente a frente com um cavaleiro numa partida de xadrez. Mas isso era nos tempos em que o cinema ousava tomar ares de ensaio filosófico. José Saramago, o escritor português, fez da morte uma cansada senhora em greve e ninguém mais morria. Mas isso é uma fábula reflexiva cada vez mais rara. O que temos agora é o domínio da dura realidade dos telenoticiários, arautos de um mundo mórbido que a cada dia nos inocula com o vírus da insensibilidade. Tanto a morte de mentirinha do cinema quanto as mortes grotescas dos jornais banalizaram o significado da morte.

Ao contrário do que dizia Oscar Wilde, penso que a morte é um mistério maior do que o amor. Porque o amor vive-se, experimenta-se, cada um sabe o que é, o que não se sabe é explicá-lo. Mas a morte, não. Ninguém voltou da terra não-desbravada de que Hamlet falava para nos contar como é por lá. É porque não existe esse “como é por lá”. Brás Cubas, o fictício defunto autor, só nos dá o relato de como foi sua vida. Sobre o que viu durante a morte, nada. Moisés escreveu todo o Pentateuco. Teria ele contado a sua morte nos últimos capítulos do livro de Deuteronômio? Essa parte deve ter sido confiada a outro escriba. E nada se diz sobre o período em que esteve morto antes de ascender ao céu.

No livro de Eclesiastes está a razão de os mortos nada falarem a respeito do seu estado. É que os mortos não sabem de coisa alguma. Para eles, não há sol, nem lua, nem trabalho. Dorme-se, apenas. Assim, morrer e ressuscitar três mil anos ou três dias depois não faz a menor diferença. É como um abrir e fechar de olhos. Num milésimo de segundo não se está, num outro se está.

A morte, contudo, deixou de ter a gravidade que possuía. A ficção domesticou a morte e a exibe em câmera lenta, num espetáculo circense que amedrontaria os gladiadores romanos, mas não nossas crianças. O público segue urrando a cada assassinato do herói, com a diferença de que a fé e a coragem também concorriam naquele antigo jogo real, enquanto hoje já nos sentimos mais civilizados porque, ora, trata-se de mero entretenimento.

As imagens onipresentes da morte na guerra nos mostram uma outra dimensão. Se antes só se sabia do resultado da batalha e dos seus mortos e feridos dias depois, agora a guerra é uma transmissão ao vivo com lances de videogame. Se os meninos já brincaram um dia de capa-e-espada e polícia-e-ladrão com a fantasia e a imaginação, hoje se finge que a sala é mais segura que a calçada, embora os meninos tenham filmes e joguinhos de atirar, atropelar e destruir com cenário, figurino, roteiro e trilha sonora.

Para os mesmos meninos (e também para as meninas e os mais crescidos), há ainda a morte cotidiana servida pelos telejornais. A cada tragédia familiar, amorosa, acidental ou proposital, temos nossa vida inundada pelo horror violento da realidade. No entanto, se na primeira vez a imagem do horror causa náuseas, o passar do tempo faz com que nos habituemos a essas imagens, pois o excesso de visibilidade afasta a surpresa e a emoção mais intensa. É como ver o mesmo filme de terror pela vigésima vez. Uma hora ninguém se assusta mais. Ao contrário, é possível até que se ria das cenas que um dia assombraram.

Para George Balandier, a morte “se banaliza pela proliferação das imagens; ela se infiltra, surge e depois desaparece. Outrora, a morte se mostrava como um espetáculo edificante. Hoje, ela se torna um instante midiático, um evento que libera uma emoção fugaz, rapidamente enfraquecida pelo “pouco de realidade” que apresenta para aqueles que lhe assistem. Essa onipresença publicitária, pela qual a morte é barateada, serve como exorcismo; ela se mostra e se dissipa no mesmo movimento, porque ela é sempre uma morte estrangeira, que é dos outros” (Le Dédale: pour en finir avec XXe siècle, p. 110-111).

Sem querer fazer uma apologia nostálgica do passado, principalmente por causa da capacidade seletiva da memória humana que emoldura tanto a infância quanto os séculos antigos, é possível argumentar sobre uma virada ocorrida no pensamento humano com a chegada da modernidade. Enquanto o cristianismo exigia um alto nível de comprometimento dos conversos, a que só se chegaria por meio da abstenção dos prazeres seculares e da mortificação da alma, a morte estava intimamente ligada aos ganhos da vida eterna. Mesmo o protestante, ainda que não aceitasse o processo de auto-imolação previsto no catolicismo, observava com meditação e preocupação seu destino após a morte.

Na modernidade, com a perda do papel regulador da religião na sociedade ocidental, há uma obsessão com a vida mais imediata, com o tudo-aqui-agora. Para o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, houve um “abrandamento do impacto da consciência da mortalidade, mas – mais essencial ainda – desligando-se esta da significação religiosa” (O mal-estar da pós-modernidade, p. 217). Segundo Bauman, “a morte, disposta outrora pela religião como uma espécie de acontecimento extraordinário” que conferia “significação a todos os acontecimentos ordinários, tornou-se ela própria um acontecimento ordinário” (idem, p. 219).

Desvinculada da religião e relegada aos questionamentos existenciais fora de moda, a morte não é mais aquele ente encapuzado de foice na mão. A ciência cosmética e a cirurgia plástica desenvolvem-se a ponto de afugentar as rugas e os vincos, delatores do envelhecimento e da proximidade da morte. Essa gerontofobia, o pavor de envelhecer, leva o ser humano a esconder seus idosos em asilos, como se a ausência deles fosse uma espécie de desejada não-existência da velhice e da morte e a sociedade moderna pudesse respirar juventude sem sobressaltos. Retirada da presença dos vivos, a morte está agora no fast-food, na dieta gordurosa, no mau colesterol, no cigarro, na fumaça dos carros, no buraco da camada de ozônio, nos ácaros do travesseiro. Seu teor transcendental dá lugar a cuidados mais ordinários, mais comezinhos.

Em relação à perda de um amigo ou um parente, recolhe-se o corpo à sepultura em cerimônias breves e a vida dos que ficaram segue seu curso. Se quem morreu foi uma celebridade, monta-se um show midiático e a morte se converte em garantia de audiência. Se morrem muitos de uma vez, em tragédias naturais ou não, a inquietação causada não nos é maior do que se tivesse morrido apenas uma pessoa.

Talvez resida aí o problema: a morte é sempre dos outros. Quando ela nos alcança, já não somos capazes de pensar a respeito.

Não me recordo de quem contava essa história (meus neurônios pouco confiáveis me fazem dizer que o autor é Gabriel Garcia Márquez). Lembro que um escritor contou que sonhara com seus amigos mais próximos. Eles conversavam, discutiam e riam juntos. Até que o escritor avisou que estava na hora de irem embora. Foi quando seus amigos lhe disseram que não podiam ir com ele, que ele teria de seguir só. O escritor percebeu, então, que se tratava da hora da sua morte. Morrer é ir para um lugar onde os amigos não estão?

Mais que isso, morrer é ir para um lugar onde estão o nada e o ninguém.

Passar os dias a pensar na morte também não é boa coisa. Mesmo porque há certa insensatez em despender minutos preciosos tentando resolver algo para o qual os engenhos do homem não encontrarão solução. Pode-se até adiar e odiar a morte, mas não há precaução nem profilaxia que lhe demova de sua tarefa de extermínio. Por outro lado, faz bem tomar tempo para refletir sobre a vida que levamos e a vida pós-morte que queremos.

O apóstolo Paulo pensou a respeito: “Porque tenho a certeza que nem a morte, nem os anjos, nem os demônios, nem as coisas presentes, nem futuras, nem as potências, nem as alturas, nem as profundidades, nem qualquer outra coisa poderá separar-me de Deus” (Romanos 8:38,39).

Meditar sobre a vida é meditar sobre Deus, o Criador e Mantenedor da vida. É encontrar motivos para viver segundo Seus planos; e os planos de Deus são de vida, e não de morte. “Deus não quer que ninguém pereça, mas que todos cheguem ao arrependimento” (II Pedro 3:9). Refletir biblicamente sobre a morte é pensar na vida após a morte, é pensar na Ressurreição, e não em atribulações por limbos e purgatórios nem em viagens reencarnatórias. A Bíblia não oferece uma perspectiva pós-morte em que ectoplasmas se comunicam com os vivos.

“Os céus e a terra tomo, hoje, por testemunhas, que te tenho proposto a vida e a morte, a benção e a maldição”. A proposta de Deus é razoável, mas Ele vai além e indica o melhor caminho: “Escolhe, pois, a vida, para que vivas, tu e a tua descendência, amando o Senhor, teu Deus, dando ouvidos a Sua voz e te achegando a Ele” (Deuteronômio 30:19,20).

Joêzer Mendonça, editor do blog Nota na Pauta, escreve com exclusividade para o Questão de Confiança.

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