quarta-feira, 19 de agosto de 2009

RELIGIÃO, VÍTIMA DO DESENCANTO?


Abdelmassih: a vergonha de todo católico

Em seu blog, o jornalista Paulo Leite Moreira (diretor de redação da revista Época) rebate alguns leitores que se sentiram ofendidos com uma postagem anterior sobre Roger Abdelmassih. Abdelmassih, autoridade médica em reprodução assistida e católico professo, atendia em clínica particular nos Jardins, bairro nobre da zona sul de São paulo. No último dia 17 de Agosto, o médico acabou preso, depois da acusação de estupro e atentado ao pudor, após denúnica feita por pacientes. O Conselho de Medicina de São Paulo abriu mais de 50 processos ético-profissionais contra ele. Na postagem atual, Paulo Leite Moreira reproduziu comentários de leitores defendendo a Igreja Católica ou acusando Abdelmassih de não ser exatamente um católico modelo.
Moreira, então, parte para o ataque: "[...] não dá para dizer que as pessoas deixam de cometer faltas graves ou mesmo crimes lamentáveis por falta de convicção religiosa." À frente, o diretor de Época lista crimes cometidos por cristãos - "pedofilia, a tortura nos tempos da Inquisição, as guerras de conquista e suas brutalidades." Para ele, tais fatos "desmentem esse poder purificador atribuído à fé religiosa." Na conclusão, o texto assevera que "nos tempos atuais a religião deixou de oferecer respostas às grandes questões que afligem o homem. Tornou-se uma convicção íntima, mas incapaz de organizar o comportamento das pessoas e definir uma visão de mundo."
Desfaçamos algumas falácias. Primeiro ponto: o poder da religião de influenciar indivíduos e sua cultura é inconteste, e isso não só em relação a cristãos. Pensemos na revolução originada pela expansão muçulmana, que chegou a modificar a cultura da Península Ibérica. Evidente que o Islã influiu sobre os diversos grupos árabes, unificando os nômades dispersos e lhes dando uma "missão".
Neste aspecto, a religião (qualquer que seja) corresponde a uma visão de mundo, como qualquer outra filosofia ou ideologia, capaz de orientar escolhas através de uma grade de valores pré-eleitos. Veja mais um caso, desta vez fora da esfera religiosa: no século XIX, o pensamento darwinista ajudou a fomentar o preconceito contra os nativos da Tasmânia. Haeckel os enxergava como similares a símios e cães, tendo, portanto, valor diferente ao europeu "mais evoluído". Outros estudiosos classificavam os tasmanianos como representantes do homem do Paleolítico. Conclusão: a "caça negra" foi amplamente apoiada e em 30 anos de "colonização" (1800-1830) a população de nativos passou de estimados 3 mil para 135 pessoas! Sem contar as intermináveis disputas de cientistas, ávidos por estudar os corpos dos tasmanianos, em busca de provas da Evolução...
Toda visão de mundo, seja ou não religiosa, influencia pessoas e sociedades. Com o Cristianismo não é diferente. O fato de cristãos praticarem crimes ou adotarem comportamentos imorais não contraria o poder moral do próprio Cristianismo, haja visto que professos cristãos podem agir de forma incoerente com aquilo que creem, ou mesmo confirmar pelas atitudes que sua verdadeira crença é diferente da que são capazes de admitir - e, neste caso, tais crenças representariam distorções personalizadas do Cristianismo.
Segundo ponto: quanto às Cruzadas, exemplo clássico de quem tem indisposição ao Cristianismo, basta que citemos um ateu em nossa defesa: "Não é a fé que leva aos massacres. É o fanatismo, seja ele religioso ou político. Pode ser perigoso crer em Deus. Vejam a noite de São Bartolomeu, as cruzadas, as guerras da religião, o jihad, o atentado de 11 de Setembro de 2001... Pode ser perigoso não crer. Vejam Stalin, Mao Tsé-tung ou Pol Pot... Quem vai calcular os mortos, de um lado e de outro, e o que eles poderiam significar? O horror é incalculável, com ou sem Deus. Isso nos ensina mais sobre a humanidade, infelizmente, do que sobre a religião." ( André Comte-Sponville, "O espírito de ateísmo: introdução a uma espiritualidade sem Deus, p. 77). O problema para Comte-Sponville está mais relacionado ao fanatismo do que à virulência inerente em uma determinada religião (embora isto não exclui a possibilidade de visões de mundo essencialmente virulentas). Não nos esqueçamos de que entre os que mais sofreram na Idade Média com a perseguição promovida pela Igreja Católica estejam outros cristãos.
Em contrapartida, um terceiro ponto: o Cristianismo revolucionou o pensamento Ocidental, promovendo o conhecimento (através da fundação de escolas e universidades) e a assistência humanitária (casas de saúde e hospitais cristãos fizeram a diferença, quando não havia serviços médicos providos por um Estado). A democracia, surgida com os gregos, ganhou indubitável reforço com a crença judaico-cristã de igualdade entre todos os homens (que possuem direitos inalienáveis, conforme a constituição norteamericana). Pensemos em Lutero, Francisco de Assis, Bach, Newton, Matin Luther King, entre outros cristãos; o que seria do mundo sem estes que foram muito além da esfera do consolo indivual, na qual se quer agrilhoar a fé cristã na atualidade?
Finalmente, se há algo verdadeiramente digno de nota no texto de Paulo Leite Moreira, é a observação da última linha: "Vivemos num mundo desencantado, que não encontra respostas em convicções divinas." Eis uma perspectiva atualíssima no campo da Sociologia da Religião, muito bem retratada em trabalhos do professor Antônio Carlos Perucci, da USP. Dentro deste prisma, o crescimento da religião não representa revitalização de valores religiosos universais, apenas um compromisso pessoal, restrito a uma área da vida do indivíduo. Ou seja: a religião moderna se acha diluída no conceito de crença para o fim de semana, sem influência na vida da pessoa como um todo. Isto se deve mais aos efeitos do chamado Pós-Modernismo do que às características do próprio Cristianismo (já discuti sobre isto; leia mais aqui).
Entrementes, abordar o Cristianismo - ou qualquer outra fé histórica - por este ângulo não faz jus aos seus preceitos originais, largamente difundidos na Bíblia. Não quero me demorar neste ponto, mas sustento que a intentio operis defendida por Umberto Eco serve como ferramenta adequada para interpretar de forma correta o texto bíblico (e, virtualmente, todo e qualquer texto); aliás, a própria Bíblia afirma ser possível interpretar com justiça ou com equivocadamente seu texto (Jr 23: 36; 2 Pe 3:16), o que exclui a multiplicidade interpretativa em assuntos doutrinários gerais, como querem pós-modernos ou ecumênicos.

Logo, embora a tendência seja fugir das "convicções divinas", talvez fosse justamente esta a resposta para muitos dos dilemas do século XXI. Uma revitalização do Cristianismo alicerçada na integridade bíblica parece ser a alternativa para quem deseja legitimamente algo mais sólido do que a filosofia difusa que ronda por aí. Porém, somente por meio da fundamentação na Bíblia o Cristianismo continuará a ser relevante – mesmo num mundo de desencanto.

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