segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

CIÊNCIA ARROGANTE E DOGMATISMO INFUNDADO: OS EXTREMOS NO CASO GALILEU


É bem propalado o polêmico julgamento do astrônomo Galileu Galilei pelos tribunais do Santo Ofício. Em 22 de Junho de 1633, o cientista florentino foi considerado culpado e mantido sob inflexível vigilância. Mas culpado de quê? A opinião pública em geral vê uma relação estrita entre a condenação de Galileu com sua defesa do heliocentrismo, numa época em que a Igreja Católica advogava o geocentrismo – baseada na premissa de que a Terra ocupava um lugar de destaque na obra divina.
O episódio protagonizado pelo cientista transmutou-se em um ícone da batalha entre fé e ciência, explorado por iluministas e modernos de forma caricata. Assim, a igreja (não mais o Catolicismo, mas a Cristandade em geral) passa por defensora retrógrada de um tradicionalismo insustentável, enquanto a Ciência ganha contornos de uma empreitada humana romântica e desafiadora, capaz de conduzir a nossa espécie a um patamar miraculoso de desenvolvimento.
O constrangimento por aquele julgamento histórico repercute no seio do Catolicismo até a atualidade. Em 15 de Fevereiro de 2009, o arcebispo Gianfranco Ravasi, presidente do conselho pontifício para a cultura, rezou uma missa para Galileu e em comemoração ao ano da Astronomia. Vários cientistas assistiram à cerimônia, que teve lugar na basílica de Santa Maria degli angeli. [1] No mesmo local, membros da Federação Mundial de cientistas organizaram uma exposição intitulada “Testemunho cultural da ligação existente entre razão, fé e ciência”, composta de obras de artistas contemporâneos. A exposição reconta as descobertas de Galileu, a quem, juntamente com Darwin, recebe homenagens através de iniciativas culturais promovidas pelo Vaticano. [2]
Ao contrário do que se faz crer, a condenação de Galileu não foi um ato originado tanto pela descoberta em si quanto por uma série de fatores históricos. Às ciências, no distante século XXVII, era dado um tratamento filosófico. Em geral, a prática científica se pautava por deduções lógicas, levando a conclusões a priori (a La Aristóteles), ao contrário de seguir observações empíricas. A própria Teologia, a partir de Tomás de Aquino, buscava uma reconciliação com a filosofia aristotélica, então dominante. Copérnico, quando propôs o heliocentrismo, agia mais pela influência do neoplatonismo do que por descobertas comprováveis. [3]
Mas não tardou para as concepção aristotélica sofresse um revés quando o astrônomo Kepler propôs que a Terra se movia em órbitas elípticas. [4] Em meio a tanta mudança de paradigma, a divulgação dos trabalhos de Galileu poderiam marcar apenas mais um capítulo. O diferencial foi a própria forma como o cientista de Florença reagiu à censura.
Em 21 de Dezembro de 1613, através de uma carta, Galileu expressou sua confiança na Bíblia como padrão de moral, embora julgasse que as Escrituras não deveriam servir de empecilho para os “direitos do pensamento científico”. Quase 20 anos após, ele publicou seu Diálogo, no qual apresenta 3 personagens: Simplício, arquétipo da filosofia cristã de seu tempo, moldada pelas opiniões de Aristóteles. Em oposição a esta personagem, encontramos Salviati, figura do empreendedorismo da ciência, “observador agudo, raciocinador prudente, nunca dogmático”. Tais características de Salviati atraem a admiração de Sagredo, o terceiro participante, o qual representa o novo homem de um novo tempo, já cansado de superstição e decidido a se aventurar pelo progresso prometido pelo colega. [5]
A obra Diálogo foi considerada um insulto, e na personagem Simplício (em Latim “Simplório”) se via uma caricatura do papa. Ainda que Galileu tenha recebido punição menos rigorosa, levando-se em conta que muitos “hereges” tinham sido queimados e torturados, é necessário reconhecer que a Igreja Católica agiu fora de sua competência ao atribuir isolamento ao cientista, além de censurar sua correspondência e privá-lo de expor livremente suas ideias. Do lado protestante, embora a aceitação do heliocentrismo tenha gerado alguma controvérsia, parece que Calvino, um século antes estabelecera as bases para se analisar as descobertas científicas aparentemente contraditórias com a Bíblia: para o reformador, o “Espírito Santo se acomodava aos usos tradicionais da época ao falar do mundo natural” e isto com respeito à linguagem empregada pelas Escrituras, e não sobre os eventos em si [6].
No caso em que Deus suspendeu temporariamente a rotação terrestre a pedido de Josué (Js 6:12-14), o texto diz que o “sol se deteve” apenas porque, a olhos comuns, e séculos antes da invenção de lunetas e observatórios astronômicos, era o sol que se movia, e não a Terra! Mas a narrativa bíblica não pode ser tomada como fantasiosa somente por acomodar-se à cultura antiga (mesmo na atualidade, nós nos referimos ao “pôr do sol”, como se fosse o sol que andasse…).
A verdade é que, o incidente com Galileu abriu precedentes, ajudando a alimentar o clima de animosidade entre religiosos e cientistas, hoje vistos como grupos antagônicos. Embora nada justifique a intromissão católica, Galileu também teve sua parcela de culpa, ao polemizar de forma desrespeitosa com oficiais da igreja, traindo um acordo que mantinha com a Santa Sé. Parece que, a partir do episódio, um cisma entre ciência e fé tornou-se inevitável no Ocidente. Entretanto, a jornada da Ciência, que adotou conceitos naturalistas ligados ao projeto do Iluminismo (e que resultou num divórcio da razão com a religião cristã) mostrou-se insuficiente para a promoção do progresso autônomo da humanidade, em todas as áreas. Ganhamos com o avanço tecnológico, mas perdemos com a visão mecanicista do homem. Usando as personagens do diálogo de Galileu, poderíamos dizer que Sagredo se decepcionou com Salviati. A maior lição que podemos aprender com a história é que se há oposição entre Cristianismo e Ciência, pelo menos um dos dois lados está equivoca – senão ambos! A verdadeira fé não conflita com a verdadeira ciência, como Newton, Kepler, Pascal e tantos outros bem souberam mostrar.

[1] “Em 400 anos, missa para Galileu”, Diário catarinense, ano 23, nº 8.333, 15 de Fevereiro de 2009, seção mundo, 28
[2] “Missa é celebrada pelos 445 anos de nascimento de Galileu”, disponível em .
[3] Colin A. Russell, Correntes Cruzadas: interações entre a ciência e a fé (São Paulo, SP: Hagnos, 2004), 38, 40.
[4] Idem, 44.
[5] Antonio Banfi, Galileu (Lisboa; Edições 70, 1992), 20, 23.
[6] Colin A. Russell, Correntes Cruzadas, 51-ss.


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